terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O PERCURSO DA AUTORIA

1 O QUE É PRECISO PARA SER AUTOR?

Num mundo institucionalizado, em que tudo é protocolado e registrado, onde o estado de direito impõe um patenteamento a toda forma de invenção, criação e produção, determina regras de “pertencimento”, instaura e regulamenta a apropriação, o processo de autorianão pode ficar na mera oralidade, sob pena do não reconhecimento, por falta da identificação, de alguém a quem possa ser imputada a autoria.

A autoria exige, sobretudo, uma responsabilidade. Mas essa responsabilidade não se restringe apenas ao sentido jurídico, ela se estende, também, e com igual rigor, perante a sociedade, à história e ao meio. Isto é, perante o contexto sócio-histórico em que se insere o autor.

Pensar o processo de autoria dentro desse estado de direito, significa pensar o processo de aquisição da escrita como uma de suas etapas, pois é através da articulação desse processo que o sujeito sai da posição de enunciador para se transformar em autor.

Essa etapa é por demais importante porque é o momento em que se deve despertar no aprendiz a consciência do simbólico, fazendo com que essa produção não seja apenas um aglomerado de frases descontextualizadas, mas uma manifestação discursiva na qual as marcas de autoria não sejam amplamente estabelecidas e onde se possa compreender as condições de produção e o processo em que se dá a ascensão por parte do sujeito, de seu papel de autor. Tal ascensão implica numa inserção do sujeito numa pressuposta realidade, em que o mesmo possa captar as manifestações culturais e os elementos que se fundem em sua própria construção, instaurando uma posição de responsabilidade no contexto histórico social e se colocando na origem do seu dizer.

Para apresentar-se como autor é preciso assumir diante das instituições (visto que a própria autoria é uma função institucionalizada) o papel social que se constitui a partir de sua relação com a linguagem e o mundo, tornar-se princípio do agrupamento, instituindo o domínio sobre as várias posições nas quais se instaura o sujeito, imprimindo a ele significações coerentes e dando sentido aos fatos.

É a organização da dispersão num todo coerente que faz com que a multiplicidade de representações possíveis do sujeito enquanto enunciador possa, num processo de conjunção, apresentar-se como autor na unidade e coerência de seu discurso.

Orlandi (1996), escrevendo sobre o processo de autoria, mais precisamente sobre a passagem enunciador/autor, fala de alguns controles e alguns tipos de mecanismos que se deve ter para a concretização dessa passagem: de um lado, os mecanismos do domínio do processo discursivo, no qual ele se constitui como autor e, de outro, os mecanismos do domínio dos processos textuais nos quais ele marca sua prática de autor.

Trata-se, portanto, de um autor que se manifesta através dos processos da escrita, isto é, um autor que deve ter, além dos domínios que lhe impõem as responsabilidades histórico-sociais, também a responsabilidade do conhecimento da prática do domínio da língua escrita.

2 SUJEITO–AUTOR E DISCURSO LITERÁRIO

Já foi dito (PÊCHEUX, 1995) que não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia. Agora, na mesma esteira, diremos que todo discurso pressupõe um autor na sua materialidade, já que o sujeito como constitutivo da linguagem também se converte em sujeito-autor. O anonimato, por exemplo, não descarta a exigência de uma autoria – o que lhe falta é apenas a identificação.

Todo discurso pressupõe um autor, mas como se processa a autoria nas variedades discursivas?

O discurso da história parece-nos fundar-se sobre si mesmo no vai-e-vem do repetível e se faz discurso quando esse repetível é fato que reclama sentido. O discurso jornalístico, em acontecimento de interesse sócio-político que possa, de certa forma, constituir-se como notícia. O discurso religioso tem bases morais e doutrinárias e, ainda, o discurso político, que se fundamenta em regimes e formas de governo. De forma que todos esses discursos aparentam ter origem em algo muito sólido e objetivo, além de demonstrarem existência própria e material, pois pertencem a um mundo que, embora se apresente por meio de representações, torna-se inteligível simbolicamente, dando-nos a ilusão de uma realidade concreta. Quer dizer, estes discursos têm os mesmos princípios fundantes (constitutivos), ainda que versem sobre coisas completamente distintas.

E o discurso literário? Esse discurso tem uma peculiaridade ímpar. É que ele se constrói e materializa sobre um mundo imaginário (ficcional). O ponto de partida desse discurso é a ruptura com o mundo da realidade. Essa ruptura instaura-se a partir da criação de um universo imaginário projetado pelo autor que, para articular o discurso, institui a figura do sujeito-narrador, que passa a conduzir o processo narrativo.

O discurso literário parte de um imaginário e se historiciza ao adquirir sentidos, passando, a partir daí, a ter existência real pela linguagem no mundo da ficção. As Aventuras de Ulisses, por exemplo, na Odisséia, após o lendário conflito de Tróia, pode nunca ter existido no mundo dos acontecimentos reais, mas como materialidade lingüística é incontestável, porque a linguagem é princípio criador, capaz de instituir um universo; basta que o autor desdobre seu imaginário pondo a língua em funcionamento.

Mas esse imaginário não se restringe à pessoa do autor, pois este é também perpassado pelas ideologias e, ao mergulhar no percurso da narratividade, executa um movimento tenso entre o real e o irreal num desdobramento próprio de sujeito da narrativa.

O discurso narrativo, como qualquer outro discurso, é heterogêneo. Ao se analisar uma narrativa como isolada, sempre se deve ter presente, que uma narrativa se constitui na relação com outras não narradas, mas possíveis.

As abordagens lingüísticas têm estudado a tensão ocasionada por essa relação entre várias narrativas produzidas por um mesmo narrador-autor. Mariani (1998) diz que:

[...] há tensão entre a narrativa que, sendo contada, fica na memória com suas variações, e aquela que talvez pudesse ter sido contada, mas não o foi por injunções históricas ou inconscientes. Essa tensão, embora silenciada, encontra-se inscrita nas narrativas de fato produzidas, podendo transbordar em diferentes situações: na ordem da história e do social, por exemplo, silêncios e resistências podem eclodir a qualquer momento levando à reescritura do narrado em um processo que sai do presente em direção ao passado.

Neste caso, o narrador encontra-se na perspectiva da posição daquele que, sabendo da narrativa permitida ao seu grupo, pode fazê-la eclodir e transmiti-la como forma de saber a outros ouvinte/leitores: surge aí a responsabilidade e a coerência do dizer. Narrador, aqui, é autor e se faz representar pela linguagem. Mas a opacidade da linguagem contrasta com uma possível representação objetiva, institui a ambigüidade e se faz dicotômica enquanto língua e discurso.

Mariani (1998) afirma que é necessário desmitificar essas dicotomias: as fronteiras entre o literário e o não-literário devem ser abolidas. Segundo ela, o que está construído nessas fronteiras, com base nas dicotomias objetividade/subjetividade, denotação/conotação, é a presença da referência nos moldes de concepções idealistas de linguagem.

Mas Faye (1971) contraria essas concepções, ao provar que a narrativa não é só referência e, com uma visão pragmática e materialista, diz que narrar ou tornar conhecido é agir socialmente. Assim, não há dúvida de que o narrador deixa marcas no texto (discurso) e que essas marcas são visivelmente históricas e sociais, pois o narrador, ao produzir ação nessa “função ativa narrador-autor”, não fala objetivamente de algo, mas se auto-engendra num processo ilusório de produção de verdade.

Benjamim (1987) também evidencia a relação entre conhecimento e narração, aponta a comunhão narrador-narrativa, num todo constituído como sujeito e linguagem. O autor metaforiza essa relação dizendo: “a narrativa mergulha a coisa narrada na vida do narrador, para, em seguida, tirá-la dela. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”. Há, neste caso, um processo de apropriação do conhecimento em que o narrador-autor assume o papel de uma consciência das consciências, para representá-la numa unidade discursiva carregada de multiplicidades sociais.

É necessário deixar claro que todo o processo narrativo se constitui numa ilusão da linguagem, pois a língua, por si só, já deixa claro a sua incompletude. Ou seja, ela não é capaz de explicar a si mesma, de forma objetiva, tendo que lançar mão de recursos que lhe possibilitem a ilusão de completude, como por exemplo, as modalidades autonímicas, no dizer de Authier-Revuz (1998) e a metáfora proposta por Pêcheux (1988), cuja ampliação nos leva a ultrapassar “o efeito de uma relação significante” e pensar numa ruptura em que o desdobramento da metáfora estende-se ao imaginário.

Pensar os efeitos de ilusão da linguagem pela ótica das modalidades autonímicas é tentar compreender as dobras enunciativas do dizer, onde o sujeito-autor nos parece emergir dessas dobras para uma espécie de “transcendência” metafórica porque, nesse ponto, a língua ganha espessura e estabelece uma dupla relação: de um lado, sujeito grudado à linguagem, depois língua em funcionamento (discurso), ampliando-se para autor; do outro, objeto real (referência), ampliando-se para um dizer do autor, que se desdobra sobre si mesmo metaforicamente, instituindo a imagem.

Do ponto de vista da Análise do Discurso – AD, o dizer sofre um deslocamento da dicotomia paradigma/sintagma, que sustentava tradicionalmente a reflexão sobre o uso da linguagem (ORLANDI, 1983) para o parafrástico/polissêmico, onde o parafrástico é o lugar do mesmo e o polissêmico, do diferente; como tratamos do discurso narrativo, outras dicotomias se apresentam, como não-literário/literário, denotativo/conotativo. Nesse ponto, estabelece-se uma correlação não-literário/denotativo e literário/conotativo, em que a primeira correlação é o lugar do conceito e a segunda, o lugar da desconstrução do real. Assim, a noção de sujeito que recobre um lugar, uma posição discursiva é, agora, a noção de autor, uma função da noção de sujeito responsável pela organização de sentidos, pela unidade do texto, produzindo o efeito de continuidade do sujeito. Para Orlandi (1996), a “função-autor é tocada de modo particular pela história: o autor consegue formular no interior do formulável e se constitui, com seu enunciado, numa história de formulações”.

Através dessa formulação, percebemos que a função-autor, como entidade subjetiva, movimenta-se nos meandros discursivos, produzindo o tecido de um mundo lingüístico-linguageiro não apenas para a representação do real, criando um mundo imaginário num espaço e tempo descontínuos, oscilando numa tensão que se estabelece entre um presente e um passado, um aqui e um lá, numa relação dinâmica que se opera no labirinto mental do narrador-autor.

O desencadeamento dessas atividades do autor numa constante tensão pelos caminhos dicotômicos, metonímicos/metafóricos, denotativo/conotativo, sempre estabelecendo uma ruptura por meio de desconstrução de uma realidade pré-construída, marca o processo de autoria e demonstra como se articula o autor no discurso literário, do qual passaremos a ver, a partir de agora, algumas peculiaridades.

3 O DISCURSO LITERÁRIO – ALGUMAS PECULIARIDADES

O discurso literário é um discurso conotado, porque se constitui através de uma articulação especial da linguagem, que tem como significante a própria linguagem cujo efeito é a ambigüidade entre uma realidade material e uma realidade ficcional.

A maneira como esse discurso se constrói, transforma incessantemente tanto as relações que as palavras mantêm consigo mesmas, utilizando-as além de seus sentidos restritos e além do sentido lógico do discurso usual, como estabelece com cada leitor/interpretante/autor, relações subjetivas que o tornam móvel, capaz mesmo de não apresentar nenhum sentido definido.

O discurso literário carrega em si a peculiaridade do enunciado poético, que pode se manifestar em sua estrutura fônica, rítmica e sintática, sugerindo significações e evocando correspondências entre termos que se tornam presentes na memória do autor, associando significantes lingüísticos a significados míticos e ideológicos, dando ao nível da consciência, os anseios do inconsciente coletivo.

O discurso literário é a configuração do mundo imaginário que se deslumbra/vislumbra na mente de quem o imagina. É um discurso “poroso”, cujas palavras nos parecem argolas que se interligam e se relacionam umas com as outras, em qualquer direção, em virtude de sua circularidade. É um discurso aberto a múltiplas interpretações. É um discurso que se compõe de uma multiplicidade de códigos, retóricos, míticos, culturais, etc., códigos estes que se articulam simultaneamente na composição de sua estrutura artístico- ideológica.

A heterogeneidade do discurso literário nos parece mais freqüente e visível a ponto de se confundir com o dialogismo bakhtiniano, por exemplo, mas há outras particularidades além do discursivo. O autor funciona não como entidade empírica, mas como uma função que se articula produzindo relações ou agrupando várias posições do sujeito (forma-sujeito do discurso), já construídas ideologicamente, como se numa seqüência de imagens, cujos efeitos de sentidos e as impressões visuais se convertem num efeito cênico.

Além dessas peculiaridades, nele estão presentes a estética, o estilo, a poeticidade e uma certa tensão dramática. O autor desse discurso se constitui como tal, não só pela capacidade de estabelecer a unidade discursiva, mas pela criação de um universo imaginário, e mais ainda, pela capacidade de articulação e “vivificação” desse universo no funcionamento da linguagem, pois a dinamicidade desse mundo se dá no espaço de tensão dramática, onde acontece o processo de unificação do dramático com o estético, o lingüístico e o poético, instituindo o percurso de discursividade literária.

4 AUTOR, RESPONSABILIDADE SOCIAL E LINGUAGEM

Foucault (1992) diz que a função-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, determina e articula o universo discursivo. Assim, entendemos que a função-autor, como a de sujeito, define-se na história e está sujeito aos processos de modificações, transformações e de coerção impostos pelos regimes institucionais.

Tal função não atua da mesma forma sobre todos os discursos em todas as épocas e em todas as formas de civilização. O ajustamento às várias etapas da história social, política e do pensamento humano confirma o caráter sócio-histórico da função-autor e daí por diante ele se define como entidade não empírica que, para colocar-se como autor, precisa estabelecer uma relação simultânea exterioridade/interioridade em que constrói sua própria identidade (de autor), assumindo o papel de autor e o que ele implica.

Reis & Lopes (1988), em “Dicionário de teoria da Narrativa”, tratando das questões inerentes ao autor, dizem que “o estatuto sócio-cultural do autor literário reflete-se no domínio da teoria e história da narrativa. Nesse contexto, o autor é entidade materialmente responsável pelo texto narrativo, sujeito de uma atividade literária, a partir da qual se configura um universo diegético”.

A condição de autor, segundo eles,

[...] liga-se estreitamente às várias incidências que atingem a autoria: a autoria compreende direitos e deveres ao mesmo tempo em que lhe confere uma certa autoridade, mas como tratamos do discurso literário, implica também, numa responsabilidade artística de trabalho com a linguagem, visto que o autor, enquanto produtor de linguagem, não pode eximir-se desse compromisso, ou seja, de colocar a linguagem em funcionamento se não da perspectiva do novo, mas sempre do diferente.

REFERÊNCIAS

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Maria Cristina Ramos Borges e Francisco Ferreira Moreira (PPGCL/Unisul 2006)

Disponível em: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0402/10.htm

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