Devemos partir do princípio que um texto é sempre recheado de outros textos, não somente o do autor; mas o texto do autor complementado pelo texto dos outros, pois na perspectiva bakhtiniana, o discurso é constituído das relações dialógicas, como um palco de luta de vozes. Bakhtin destaca que essas relações são possíveis tanto entre enunciações integrais, como em parte significante do enunciado, e até mesmo em uma palavra isolada – isto “se ouvimos nela a voz do outro”, isto é, “se nela se chocam dialogicamente duas vozes” (BAKHTIN, 1997b, p. 184).
Os textos são dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir. (BARROS, 1999, p.06).
Segundo Barros (1999), nenhuma palavra é nossa, ela traz a perspectiva de outra voz. O texto, concebido por Bakhtin, marca o ponto de intersecção de vários diálogos, de cruzamento de vozes que se originaram em práticas de linguagem diversificada socialmente, essas vozes, por sua vez, polemizam-se ou se completam ou respondem umas ás outras (BARROS, 1999).
Desse modo, podemos considerar monofonia e polifonia como resultados de efeitos de sentidos (BARROS, 1999) que decorrem de procedimentos discursivos, ou seja, se um texto “entrever muitas vozes”, diríamos que ele é polifônico; por outro lado, se ele esconder essas vozes, então apresenta o estatuto de um texto monofônico.
Seguindo essa perspectiva, inicialmente pretendemos apenas encontrar essas vozes ou discursos no conto escolhido e supracitado, para detectar a presença da polifonia nas linhas do texto, para depois relacionar com as teorias durante a análise, e comprovar o uso delas na constituição do texto. Também mostraremos como a voz do Outro, evocada no discurso do Eu, instaura o fenômeno polifônico.
O Outro e o Eu constituem sujeitos- “afirmar o ‘eu’ do outro não como objeto, mas como outro sujeito”. (BAKHTIN, 1997b, p. 184). Também mostraremos em nosso futuro estudo como essa polifonia está sendo usada como elemento ou recurso estilístico na composição desses textos; também tratando do mesmo assunto, Barros (1999:04), afirma que todo texto é “tecido polifonicamente por fios dialógicos de vozes que polemizam entre si, se completam ou respondem umas às outras”, o que mostra que a maior parte dos textos existentes, seja ele literário ou não, é composta por outros textos, e que esses textos se interligam entre si, em uma ou mais vozes no mesmo texto, ou seja, a voz do autor interligando-se ou mesclando-se com a voz do outro ou dos outros (no caso de mais de uma voz) em um único texto.
Tanto as palavras quanto às idéias que vêm de outrem, como condição discursiva, tecem o discurso individual de forma que as vozes – elaboradas, citadas, assimiladas ou simplesmente mascaradas – interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritárias de um discurso monologizado. (BRAIT, 1999, p. 14,15).
O discurso polifônico é, hoje, a forma que prevalece aberta sempre a novas leituras. A tendência de esconder inspirações ou raízes subverteu-se na romancidade, que é configurada por Bakhtin como “pluralidade de vozes”. Tal conceito, cunhado pelo filósofo em Problemas da poética de Dostoievski (2005), faz referência às inovações pertencentes à obra desse escritor que foi uma inspiração para Bakhtin.
Essa perspectiva surge como uma manifestação das vozes sociais diretamente ligadas ao fenômeno da polifonia: os contrastes e temas tecem uma malha textual refletindo contradições, sobreposições. Segundo Bakhtin apud Brait (2009), toda obra é construída como um contínuo diálogo interior de três vozes nos limites de uma consciência que se decompôs.
A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento. (BAKHTIN, 2005, p. 21)
A incorporação de vozes de outros em um novo enunciado pode se dar de forma demarcada, em que a tomada do discurso alheio é mais nítida, e de forma não demarcada e, por isso, não tão facilmente percebida.
Há duas maneiras básicas de incorporar distintas vozes no enunciado:
a) aquela em que o discurso do outro é ‘abertamente citado e nitidamente separado’;
b) aquela em que o enunciado é bivocal, ou seja, internamente dialogizado. (FIORIN, 2006, p. 174)
Segundo a teoria do dialogismo bakhtiniano (Volochinov, 1929), o discurso é constitutivamente polifônico e se caracteriza por um jogo de vozes, de discursos, num permanente diálogo. Bakhtin considera o dialogismo o princípio constitutivo da linguagem que é, para ele, por constituição, dialógica, num cruzamento constante de discursos. Esse cruzamento, essa pluralidade existente no discurso é que o faz polifônico, mostrando as diferentes vozes que nele se realizam. Assim, o sujeito, ao falar, entende seu interlocutor não apenas como um receptor – portanto, o sujeito não é apenas um emissor –, mas como alguém com quem ele irá contrapor o seu discurso.
Com Authier-Revuz (1990), há a teorização de um discurso não linear, derrubando a ideia de um dizer único e bem especificado. Na verdade, há um discurso heterogêneo, que inscreve o outro na cadeia discursiva através de formas marcadas. Esse discurso heterogêneo, plural, polifônico – o um e o outro no discurso – apresenta um sujeito que coloca em evidência o seu inconsciente, possibilitando-lhe mostrar a sua intervenção no mundo exterior, seu encontro com outros discursos.
representar a idéia do outro, conservando-lhe toda a plenivalência enquanto idéia, mas mantendo simultaneamente a distância, sem reafirmá-la nem fundilá com sua própria ideologia representada. [...] a idéia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre duas consciências. (BAKHTIN apud BRAIT, 2009)
Nesse sentido, a idéia é semelhante ao discurso, com o qual forma uma unidade dialética. Com o discurso, a idéia quer ser ouvida, entendida, “respondida” por outras vozes e de outras posições. Como o discurso, a idéia é por natureza dialógica.
De acordo com Bakhtin, a polifonia “pressupõe uma multiplicidade de vozes plenivalentes nos limites de uma obra” (2005: 35), o que permite o autor a escolher como essas vozes podem-se interligar em alguma parte do texto. “A polifonia ocorre quando cada personagem fala com a sua própria voz, expressando seu pensamento particular, de tal modo que, existindo n personagens, existirão n posturas ideológicas” (LOPES 2003: 74).
As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornaram-se bivocais. O único que pode diferençar-se é a relação de reciprocidade entre essas duas vozes. A transmissão da afirmação do outro em forma de pergunta já leva a um atrito entre duas interpretações numa só palavra, tendo em vista que não apenas perguntamos como problematizamos a afirmação do outro. O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçando as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestidos de terceiras das nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas. (BAKHTIN (2002) apud BRAIT, 2009)
Olá!! Poderia me informar alguns livros de onde retirou essas referências por favor?
ResponderExcluirMuito elucidativo o estudo.
ResponderExcluirMuito bom!!
ResponderExcluirRealmente Bakhtin conceitou a polifonia de uma forma bem esclarecedora.