terça-feira, 25 de outubro de 2011

A SOLIDÃO DO GIRAFO

“Vai, Raio de Luz, vai até Brasília e procura lá a tua namorada, que te dará prazer e filhos, e, com eles, voltarás ao Rio de Janeiro, onde não tens chance de casamento e multiplicação da espécie. Vejo-te passar, o esguio pescoço desafiando viadutos, passarelas e túneis, e sinto que o surrealismo é coisa de arquivo. Pintor que te pintasse viajando dessa maneira seria apenas um copista do cotidiano.

Não podias mais continuar no Rio, sem companheira prestante, e sujeito a equívocos escabrosos com os machos da tua espécie. Precisavas de uma girafa indubitável para o ofício do amor. Puseram-te em caminhão equipado com fiação elétrica e buzina de alarme, acionável ao menor indício de anormalidade, seja na rodovia seja no interior de tua silenciosa organização de girafo.

Sei que deformo teu nome, trocando a letra final, mas já é tempo de dissipar a ambiguidade das designações genéricas, em meio à indefinição crescente dos sexos, observada na sociedade humana. Quando já não se sabe ao certo quem é varão quem é varoa, pelo menos se saiba distinguir o pavão da pavoa ou pavona, o elefanto da elefanta, o sabiau da sabiá, o cisno da cisna, o tigro da tigra, em vez de nos socorrermos do aditamento macho e fêmea. Se distinguimos gato e gata, por que não foco e foca, tamanduó e tamanduá, tatu e tatua? (Deixo aos entendidos o levantamento da nominata completa.) Fica mais fácil e constitui merecida homenagem à pequena, mas divina, diferença que tornou viável o milagre da vida.

O Rio anda tão pobre que até lhe falta uma girafa para amar um girafo, e é preciso recorrer a Brasília, que de resto não consta ser pródiga em atendimento às necessidades nacionais. Mas que tenha uma girafa núbil e disponível já é coisa boa de se saber. Não ficarás solteiro, “Raio de Luz”. E procriarás e tua prole se desdobrará em girafinhos e girafinhas que enriquecerão os nossos zôos, para alegria da meninada curiosa de ver bichos originais, em confronto com a pouca ou nenhuma originalidade de tantos bichos por aí, quadrúpedes ou bípedes.

Por ser conveniente o otimismo, descarto a hipótese de a girafa brasiliana te recusar. Seria muito triste, além de muito oneroso, que a tua viagem, exigindo mil cuidados, tivesse como epílogo o desentendimento entre os parceiros. Não resta dúvida que, democraticamente, a moça girafa tem direito de escolha, e pode não ir contigo e com teu focinho. Mas, por outro lado, não consta que em alguma parte do Brasil os moços girafos sejam numerosos, e ela corre o risco de morrer solteira. Então, presumo que tudo contribui para um enlace feliz; o solitário carioca rejubila-se ao encontrar a solitária planaltina.

Casamento giráfico: não será tão pomposo quanto o do Príncipe Charles, mas em ocasião como esta, de nuvens escuras e bombas perversas, é um descanso para o espírito saber que todas as providências estão sendo tomadas para que um girafo encontre sua girafa e deste encontro resultem girafotes, ou girafelhos, que são fedelhos girafos.

Eu, cândido de coração, me associo à expectativa amena de termos no futuro um zoológico bem provido de população girafista de dois sexos, graças à tua linhagem, “Raio de Luz”. Chego a delirar, e sonho um zôo exclusivamente dedicado ao animal mais alto do mundo e que, por isso mesmo, nos dê sugestões de altura, quer material quer moral.

Essa fauna esplêndida, que efeito mágico produzirá! Cada um de nós há de sentir-se estimulado a crescer no mínimo alguns centímetros em dignidade cívica, abnegação, amor à verdade. Uma verdade que talvez esteja refugiada nas selvas mas que se entremostre, de relance, no simples e exato comportamento de um animal trazido para o nosso convívio.

A girafa parece que não consegue lamber o próprio corpo, quer dizer, ela pede que outros o façam. Expõe o corpo e confia na ação alheia. Defende-se menos do que se expõe. E, sendo animal exposto, sujeito à apreciação e ao julgamento gerais, é realmente de bom convívio. Não quer privilégios. E, mesmo calada, não é sigilosa.

A mania de sigilo, que nós, supostos racionais, inventamos está longe de ser uma regra da natureza. Os bichos não mentem. São o que são, verificáveis. Eu gosto de girafa. Tem pescoço e não tem artimanha. Só não dou um abraço a Raio de Luz porque seria impraticável. Mas torço pelo seu feliz himeneu e prometo mesmo compor um epitalâmio para o casal.”

Carlos Drummond de Andrade

Jornal do Brasil, 09/05/1981 (texto compilado na íntegra)

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