domingo, 9 de outubro de 2011

A Carta

Senhor, posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escreveram a Vossa Alteza a notícia do achado desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dara disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!

A partida de Belém foi -- como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos Canárias , mais perto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em calma, à ista delas. Obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas ou menos, houvemos vista das lhas de Cabo Verde , asaber da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.

Domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu ,e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.

Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa. É de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza.

Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos,. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E enquanto fazíamos lenha , construíram dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara.

Muitos deles vinham ali estar com carpinteiros. E creio que o faziam mais para veram a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, por que eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.

Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navia dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus, isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de prol.

Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sanco de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, vei-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua adeira. E de tudo quantos lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido e frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.

E pois que, senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem sevida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vira da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê.

Pero Vaz de Caminha

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