quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A POESIA E A SOCIEDADE




A Função Social da Poesia
Por T. S. Eliot (1943)



Ensaio retirado de seu livro On Poetry and Poets, London, Faber and Faber, 1971.


Tradução de Bruno I. Mori


--------------------------------------------------------------------------------

O título deste ensaio é tão provável de sugerir coisas diferentes a diferentes pessoas que posso ser desculpado por primeiro explicar o que não quero dizer com ele antes de ir começando a explicar o que quero dizer de fato. Quando falamos da “função” de qualquer coisa, tendemos a estar pensando no que essa coisa deveria fazer em vez de no que realmente faz ou tem feito. Essa é uma distinção importante, pois não pretendo falar do que acho que a poesia deveria fazer. Pessoas que nos contam o que a poesia deveria fazer, especialmente se são poetas elas próprias, em geral têm em mente o tipo particular de poesia que gostariam de escrever. É sempre possível, é claro, que a poesia possa ter no futuro um diferente emprego do que tivera no passado; mas, mesmo que assim o seja, é válido decidir primeiro que função ela teve no passado, tanto num tempo como noutro, numa língua como noutra, e universalmente. Eu poderia facilmente escrever sobre o que faço eu mesmo com a poesia, ou o que gostaria de fazer, e então tentar persuadi-los de que isso é exatamente o que todos bons poetas tentaram fazer, ou deveriam ter feito, no passado – apenas não tiveram completo êxito, mas talvez isso não seja culpa deles. Porém, parece-me provável que, se a poesia – e quero dizer toda grande poesia – não tivera função social no passado, não seja de se esperar que tenha alguma no futuro.

Quando digo toda grande poesia, tenciono evitar outro modo de que possa tratar do assunto. Alguém pode tomar os diversos tipos de poesia, um após outro, e discutir a função social de cada variedade sucessivamente, sem atingir a questão geral de qual é a função da poesia enquanto poesia. Quero distinguir entre funções gerais e particulares, para que saibamos do que não estamos falando. A poesia pode ter um propósito social deliberado e consciente. Em suas formas mais primitivas esse propósito é muitas vezes bastante claro. Há, por exemplo, runas e cantos antigos, alguns dos quais possuíam fins mágicos um tanto práticos – livrar de mau olhado, curar alguma doença ou aplacar algum demônio. A poesia é usada desde os primeiros tempos em rituais religiosos e, quando cantamos hinos, ainda estamos usando poesia para um propósito social particular. As formas primordiais de épicos e sagas podem ter transmitido o que se tinha por história, antes de sobreviverem apenas para entretenimento comunitário; e, antes do uso da linguagem escrita, uma forma regular de versos deve ter sido extremamente útil à memória – e a memória dos primitivos bardos, contadores de estórias e estudiosos deve ter sido prodigiosa. Em sociedades mais avançadas, tais como as da antiga Grécia, também são conspícuas as reconhecidas funções sociais da poesia. O drama grego desenvolve-se a partir de ritos religiosos e persiste como uma cerimônia pública formal associada a tradicionais celebrações religiosas; a ode pindárica desenvolve-se em relação a uma ocasião social particular. Certamente, tais usos definidos da poesia deram a esta a estrutura que tornou possível o alcance da perfeição em seus tipos particulares.

Algumas dessas formas, como as do cântico religioso que mencionei, subsistem na poesia mais moderna. A acepção do termo poesia didática sofreu algumas mudanças. Didático pode significar “transmitindo informação”, pode significar “dando instrução moral” ou pode significar algo que compreenda ambos os sentidos. As Geórgicas de Virgílio, por exemplo, são poesia extremamente bela e contêm informações bastante sensatas sobre agricultura. Entretanto, pareceria impossível, no presente, escrever um livro atualizado sobre agricultura que também fosse ótima poesia: em primeiro lugar, o assunto mesmo tornou-se muito mais complicado e científico; em segundo lugar, ele pode ser exposto mais facilmente através da prosa. Também não devemos, como o fizeram os romanos, escrever em verso tratados astronômicos e cosmológicos. O poema cujo intuito ostensivo é o de transmitir informação foi suplantado pela prosa. A poesia didática gradualmente tornou-se limitada à poesia de exortação moral, ou à poesia que visa a persuadir o leitor do ponto de vista do poeta sobre algo. Inclui, portanto, grande parte do que se pode chamar de sátira, embora a sátira esteja imbricada com a poesia burlesca e a paródia, que têm primariamente a intenção de fazer rir. Alguns dos poemas de Dryden, no século XVII, são sátiras no sentido em que pretendem ridicularizar os objetos contra os quais são dirigidos, e também didáticos na intenção de persuadir o leitor de pontos de vista religiosos e políticos particulares; e, ao fazerem-no, também utilizam o método alegórico de disfarçar a realidade em ficção: The Hind and The Panther, que pretende persuadir o leitor de que a Igreja de Roma tinha a retidão moral a seu favor contra a Igreja Anglicana, é seu mais memorável poema deste tipo. No século XIX, um zelo por reformas sociais e políticas inspirou muito da poesia de Shelley.

Quanto à poesia dramática, há uma função social de um tipo que lhe é agora peculiar. Pois enquanto a maior parte da poesia atual se escreve para ser lida a sós, ou em voz alta em companhia de poucos, o verso dramático em si tem como função produzir uma impressão imediata e coletiva sobre um grande número de pessoas reunidas para assistir a um episódio imaginário representado num palco. A poesia dramática é diferente de qualquer outra, mas, como suas leis específicas são as do drama, sua função está mesclada com a função do drama em geral, e não estou aqui interessado nas funções sociais específicas do drama.

Quanto à função específica da poesia filosófica, isso envolveria uma análise e um relato histórico de certa extensão. Acho que mencionei tipos de poesia o suficiente para deixar claro que a função específica de cada uma está relacionada a alguma outra função: da poesia dramática com o drama, da poesia didática de informação com a função de seu tema, da poesia didática de filosofia, religião, política ou moral com a função de cada um desses assuntos. Podemos considerar a função de qualquer um desses tipos e ainda assim deixar intocada a questão da função da poesia. Pois tudo isso pode ser tratado em prosa.

Mas antes de prosseguir, quero afastar uma objeção que pode ser levantada. As pessoas às vezes desconfiam da poesia que possui um propósito particular: poesia na qual o poeta está advogando opiniões sociais, morais, políticas ou religiosas. E estão muito mais inclinadas a dizer que ela não é poesia quando não gostam das opiniões particulares; do mesmo modo que outras pessoas muitas vezes pensam que algo é verdadeira poesia porque por acaso exprime um ponto de vista que apreciam. Devo dizer que esta questão – se um poeta está usando sua poesia para advogar ou atacar um comportamento social – não importa. Versos ruins podem ficar transitoriamente em voga quando o poeta reflete uma atitude popular do momento; mas a real poesia sobrevive não só a uma mudança de opinião popular, mas à completa extinção do interesse pelas questões com as quais o poeta estava tão apaixonadamente preocupado. O poema de Lucrécio persiste um grande poema, embora suas noções de física e astronomia estejam desacreditadas; os de Dryden, embora as disputas políticas do século XVII não mais nos interessem; exatamente como um grande poema do passado ainda pode dar grande prazer, embora seu tema seja algum que devamos hoje tratar em prosa.

Agora, se devemos encontrar a essencial função social da poesia, temos de olhar antes para suas mais óbvias funções, aquelas que deve desempenhar se é que deve desempenhar alguma. Penso que a primeira de que podemos ter certeza é a de que a poesia deve proporcionar prazer. Se você perguntar que tipo de prazer, só posso então responder que é o tipo de prazer que a poesia proporciona: simplesmente porque qualquer outra resposta nos levaria a divagações sobre estética e a questão geral da natureza da arte.

Suponho que se concordará que todo bom poeta, seja ele um grande poeta ou não, tem algo a dar-nos além de prazer: pois se fosse apenas prazer, o prazer mesmo não poderia ser do tipo mais elevado. Além de qualquer intenção específica que possa ter a poesia, tais como as que já exemplifiquei em seus vários tipos, há sempre a comunicação de alguma nova experiência, ou uma inédita compreensão do familiar, ou a expressão de algo que vivenciamos mas para o qual não temos palavras, o que engrandece nossa consciência ou refina nossa sensibilidade. Mas não é com tal benefício individual dado pela poesia, não mais que com a qualidade do prazer individual, que este ensaio está preocupado. Creio que todos entendemos ambos o tipo de prazer que a poesia pode proporcionar e o tipo de diferença, além do prazer, que ela faz às nossas vidas. Sem produzir esses dois efeitos, ela simplesmente não é poesia. Podemos admitir isso, mas ao mesmo tempo não notar algo que ela faz por nós coletivamente, como sociedade. E digo isso em seu sentido mais amplo. Pois julgo importante que todo povo deva ter sua poesia própria, não simplesmente para aqueles que apreciam poesia – essas pessoas poderiam sempre aprender outra língua e apreciar sua poesia – mas porque isso realmente faz diferença à sociedade como um todo, e isto vale para as que não gostam de poesia. Incluo até aqueles que não sabem os nomes de seus próprios poetas nacionais. Esse é o real assunto deste ensaio.

Observamos que a poesia distingue-se de toda outra arte por ter um valor pelo povo que é da raça e língua do poeta, valor que não pode ter por nenhum outro. É verdade que até a música e a pintura possuem um caráter local e racial: mas certamente as dificuldades de apreciação nessas artes, para um estrangeiro, são muito menores. É verdade por outro lado que textos em prosa têm um significado em sua língua original que se perde na tradução; mas todos sentimos que perdemos muito menos ao ler um romance em tradução que ao ler um poema; e na tradução de alguns tipos de trabalho científico a perda é virtualmente nula. Que a poesia é muito mais local que a prosa pode-se ver na história das línguas européias. Ao longo da Idade Média e até há poucas centenas de anos, o latim permanecia a língua para filosofia, teologia e ciência. O impulso rumo ao uso literário das línguas dos povos começou com a poesia. E isso parece perfeitamente natural quando percebemos que a poesia, primariamente, diz respeito à expressão do sentimento e da emoção; e que o sentimento e a emoção são particulares, enquanto o pensamento é geral. É mais fácil pensar numa língua estrangeira do que nela sentir. Portanto, nenhuma arte é mais obstinadamente nacional que a poesia. Um povo pode ter sua língua detraída, suprimida, e outra língua compelida sobre as escolas; mas a menos que se lhe ensine a sentir numa nova língua, a antiga não foi erradicada e reaparecerá na poesia, que é o veículo do sentimento. Acabo de dizer “sentir numa nova língua”, e quero dizer algo mais que meramente “exprimir seus sentimentos numa nova língua”. Um pensamento expresso numa língua diferente pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um sentimento ou uma emoção expressa numa língua diferente não é o mesmo sentimento ou emoção. Uma das razões para aprendermos bem pelo menos uma língua estrangeira é que adquirimos um tipo de personalidade suplementar; uma das razões para não adquirirmos uma nova língua em lugar da nossa é que a maioria de nós não quer tornar-se uma pessoa diferente. Uma língua superior raramente pode ser exterminada exceto pelo extermínio das pessoas que a falam. Quando uma língua suplanta outra é muitas vezes porque possui vantagens que a elevam e que oferecem não uma mera diferença, mas uma gama mais ampla e mais refinada que a língua primitiva não só para pensar, mas para sentir.

Emoção e sentimento são então mais bem expressos na língua comum das pessoas – isto é, na língua comum a todas as classes: a estrutura, o ritmo, a sonoridade, o estilo de uma língua exprimem a personalidade do povo que a fala. Quando digo que é a poesia, em vez da prosa, que se preocupa com a expressão da emoção e do sentimento, não quero dizer que a poesia não precisa possuir conteúdo intelectual ou significado, ou que a grande poesia não contém mais desse significado que a poesia inferior. Porém, desenvolver esta investigação me tiraria de meu objetivo imediato. Considerarei de acordo que as pessoas encontram a expressão mais consciente de suas mais profundas emoções na poesia de sua própria língua, em vez de em qualquer outra arte ou na poesia de outras línguas. Isso não significa, é claro, que a verdadeira poesia está limitada a sentimentos que todos podem reconhecer e compreender; não devemos limitar a poesia à poesia popular. Basta que, num povo homogêneo, os sentimentos dos mais refinados e complexos indivíduos tenham algo em comum com os sentimentos dos mais grosseiros e simples, algo que não têm em comum com os de pessoas de seu mesmo nível que falam outra língua. E, quando uma civilização é saudável, o grande poeta terá algo a dizer a seus compatriotas em todos os níveis de educação.

Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é apenas indiretamente para com seu povo; seu dever direto é para com sua língua: primeiro, preservar e, segundo, ampliar e aperfeiçoar. Ao exprimir o que outras pessoas sentem, ele também está mudando o sentimento, por torná-lo mais consciente; está fazendo-as mais sabedoras do que já sentem, e portanto ensinando-as algo sobre si mesmas. Ele, no entanto, não é apenas uma pessoa mais consciente que as demais; é, além disso, individualmente distinto das outras pessoas, e também de outros poetas, e pode fazer seus leitores conscientemente compartilhar novos sentimentos que até então não haviam vivenciado. Essa é a diferença entre o escritor que é meramente excêntrico ou louco e o autêntico poeta. Aquele pode ter sentimentos que são únicos mas não podem ser compartilhados, e que são, portanto, inúteis; este descobre novas variações de sensibilidade que podem ser apropriadas por outrem. E, ao exprimi-las, ele está desenvolvendo e enriquecendo a língua que fala.

Já disse quase o suficiente sobre as diferenças impalpáveis do sentir entre um povo e outro, diferenças que são confirmadas, e ampliadas, por suas diferentes línguas. Mas as pessoas não apenas vivenciam o mundo diferentemente em diferentes lugares; vivenciam-no diferentemente em tempos diferentes. De fato, nossa sensibilidade está constantemente mudando, como muda o mundo em nosso redor: o nosso não é o mesmo que o dos chineses ou dos hindus, mas também não é o mesmo que o dos nossos ancestrais, passadas várias centenas de anos. Não é o mesmo que o de nossos pais; e, finalmente, nós próprios não somos bem as mesmas pessoas que éramos há um ano. Isto é óbvio; mas o que não é tão óbvio é que esta é a razão por que não podemos nos permitir parar de escrever poesia. A maioria das pessoas educadas sente certo orgulho dos grandes autores de sua língua embora possa nunca lê-los, exatamente como é orgulhosa de qualquer outro mérito de seu país: uns poucos autores até se tornam célebres o bastante para serem mencionados de vez em quando em discursos políticos. Porém, a maior parte das pessoas não se dá conta de que isso não é suficiente; de que a menos que elas continuem a produzir grandes autores, e especialmente grandes poetas, sua língua se deteriorará, sua cultura se deteriorará e talvez seja absorvida por uma mais forte.

Um ponto, é claro, é que se não temos literatura viva nos tornaremos mais e mais alienados da literatura do passado; a não ser que mantenhamos uma continuidade, nossa literatura do passado se tornará mais e mais remota até que nos esteja tão estranha quanto a literatura de um povo estrangeiro. Porque nossa língua continua mudando; nosso modo de vida muda de todas as maneiras sob a pressão de mudanças materiais em nosso meio ambiente; e a não ser que tenhamos aqueles poucos homens que combinem uma excepcional sensibilidade com um poder excepcional sobre as palavras, nossa própria habilidade não apenas de exprimir, mas até de sentir mesmo as mais grosseiras emoções, degenerará.

Importa pouco se um poeta teve um grande público em seu próprio tempo. O que importa é que sempre deve existir pelo menos um pequeno público para ele em todas as gerações. Entretanto, o que acabei de dizer sugere que sua importância é para com seu próprio tempo ou que poetas mortos deixam de ser importantes para nós a não ser que tenhamos poetas vivos também. Insistiria até em meu primeiro ponto e diria que é uma circunstância um tanto suspeita se um poeta conquista um público muito rapidamente: pois nos leva a temer que ele não está realmente fazendo algo de novo, que só está dando às pessoas aquilo a que já estavam acostumadas, e portanto o que já tiveram dos poetas da geração anterior. Mas que um poeta deva ter o certo, pequeno público em seu próprio tempo é importante. Deve sempre haver uma pequena vanguarda de pessoas, apreciadoras de poesia, que são independentes e estão um tanto à frente de seu tempo ou prontas para assimilar mais rapidamente a novidade. O desenvolvimento da cultura não significa trazer todos ao front, o que significa nada mais do que pôr todos em concordância: significa a manutenção de uma élite tal, com o principal e mais passivo corpo de leitores não atrasado mais do que cerca de uma geração. As mudanças e desenvolvimentos da sensibilidade que aparecem antes entre uns poucos se estenderão gradualmente para a língua, através da influência destes sobre outros – e mais instantaneamente populares – autores; e na época em que elas já estiverem bem estabelecidas, novos avanços se exigirão. Além do mais, é através dos autores viventes que os mortos continuam vivos. Um poeta como Shakespeare influenciou profundamente a língua inglesa não apenas por sua influência em seus sucessores imediatos. Pois os maiores poetas têm aspectos que não se revelam prontamente; e, por exercerem uma influência direta em outros poetas séculos depois, eles continuam a influenciar a língua vivente. Na verdade, se um poeta inglês pretende aprender como usar as palavras em seu próprio tempo, deve devotar um minucioso estudo àqueles que melhor usaram-na no tempo deles; àqueles que, em seu próprio tempo, renovaram a língua.

Até agora apenas sugeri o ponto final, que considero se poder dizer, a que chega a influência da poesia; e isso pode ser melhor colocado pela asserção de que ela fará diferença, afinal, ao discurso, à sensibilidade, às vidas de todos os membros de uma sociedade, a todos os membros da comunidade, a todo o povo, quer leiam e gostem de poesia, quer não: de fato, até mesmo quer saibam, quer não, os nomes de seus maiores poetas. Na mais distante periferia, sua influência certamente é bastante difusa, bastante indireta e bastante difícil de se provar. É como acompanhar o curso de um pássaro ou de um avião num céu limpo: se você o vira quando estava um tanto próximo, e continuara fitando-o enquanto voava cada vez mais longe, ainda poderá vê-lo a grande distância, distância a que o olho de outra pessoa, a quem você tentasse apontá-lo, seria incapaz de encontrar. Assim, se você acompanhar a influência da poesia, através daqueles leitores por ela mais influenciados, àquelas pessoas que em absoluto nunca lêem, encontrá-la-á presente em todo lugar. Pelo menos a encontrará caso a cultura nacional esteja viva e saudável, pois numa sociedade saudável há uma influência contínua e recíproca e uma interação das partes sobre as outras. E isto é o que quero dizer com a função social da poesia em seu sentido mais amplo: que ela realmente, em proporção a sua excelência e vigor, influencia o discurso e a sensibilidade da nação inteira.

Você não deve imaginar que estou dizendo que a língua que falamos é determinada exclusivamente por nossos poetas. A estrutura da cultura é muito mais complexa que isso. Com efeito, será igualmente verdadeiro que a qualidade de nossa poesia é dependente do modo de as pessoas usarem sua língua: porque um poeta deve tomar como seu material sua própria língua, como ela é realmente falada em sua volta. Se estiver se aperfeiçoando, ele lucrará; se estiver se deteriorando, deve fazer o melhor possível com ela. A poesia pode até certo ponto preservar, e até restaurar, a beleza de uma língua; pode e deve também ajudá-la a se desenvolver, a ser igualmente sutil e precisa nas mais complicadas condições e para os propósitos inconstantes da vida moderna, como o fora em e para uma época mais simples. Mas a poesia, como todo outro singular elemento nessa misteriosa personalidade social que designamos nossa “cultura”, deve estar dependente de muitas circunstâncias que estão além do controle desta.

Isso me conduz a algumas reflexões finais de uma natureza mais geral. Minha ênfase até este ponto foi sobre a função nacional e local da poesia; e isto deve ser suavizado. Não quero deixar a impressão de que a função da poesia é dividir pessoas de pessoas, pois não acredito que as culturas de diversos povos da Europa possam prosperar isoladas umas das outras. No passado, houve sem dúvida grandes civilizações, produzindo grande arte, pensamento e literatura, que se desenvolveram em isolamento. Disto não posso falar com segurança, pois algumas delas podem não ter sido tão isoladas como parece à primeira vista. Mas não tem sido assim na história da Europa. A Grécia Antiga mesma devia muito ao Egito, e um tanto às fronteiras asiáticas; e nas relações dos Estados gregos entre si, com seus diferentes dialetos e diferentes modos, podemos encontrar uma influência recíproca e estímulo análogos aos dos países da Europa uns sobre os outros. A história da literatura européia, no entanto, mostrará que nenhuma tem sido independente da outra; mas que tem havido um constante intercâmbio, e que, em troca, cada uma tem sido continuamente revitalizada, de tempos em tempos, por estimulação externa. Uma autarquia geral na cultura simplesmente não funcionará: a esperança de perpetuar a cultura de qualquer país reside na comunicação com as outras. Porém, se a separação de culturas na unidade da Europa é um perigo, também o seria uma unificação que levasse à uniformidade. A variedade é tão essencial quanto a unidade. Por exemplo, para certos propósitos restritos, há muito a se dizer em favor de uma lingua franca universal como o Esperanto ou o inglês básico. Mas supondo que toda a comunicação entre as nações fosse feita em língua tão artificial, quão imperfeita ela seria! Ou, então, seria inteiramente adequada em alguns pontos particulares, e haveria uma completa falta de comunicação em outros. A poesia é um constante lembrete de todas as coisas que só podem ser ditas em uma língua, e que são intraduzíveis. A comunicação espiritual entre povos e povos não pode ser conduzida sem os indivíduos que se dêem o trabalho de aprender pelo menos uma língua estrangeira tão bem quanto alguém pode aprender qualquer língua, exceto a sua própria; e que conseqüentemente sejam capazes, em maior ou menor grau, de sentir em outra língua tanto quanto em sua própria. E o entendimento que alguém faz de outro povo, dessa maneira, precisa ser suplementado pelo entendimento feito por aqueles indivíduos deste outro povo que se esforçaram para aprender a língua deste alguém.

De maneira incidental, o estudo da poesia de outro povo é peculiarmente instrutivo. Eu disse que há qualidades da poesia de toda língua que somente aqueles que a têm como língua nativa podem compreender. Mas há também outro lado para isso. Percebi algumas vezes que, ao tentar ler uma língua que não conhecia muito bem, não entendia um fragmento de prosa até que o entendesse de acordo com os padrões do professor escolar: isto é, tinha de me certificar da acepção de toda palavra, de apreender a gramática e a sintaxe, e então poderia ponderar em inglês o trecho. Mas também percebi algumas vezes que um fragmento de poesia, que não conseguiria traduzir, contendo muitas palavras não familiares a mim, e sentenças que não conseguiria construir, trazia algo imediato e vívido, que era único, diferente de qualquer coisa em inglês – algo que não conseguiria colocar em palavras e, no entanto, senti que compreendera. E ao aprender melhor aquela língua, percebi que esta impressão não era um engano, não era algo que imaginara estar na poesia, mas algo que realmente estava lá. Por isso, em poesia você pode, de quando em quando, penetrar em outro país, por assim dizer, antes de seu passaporte ter sido emitido ou sua passagem retirada.

A questão toda da relação entre países de línguas diferentes mas de culturas relacionadas, dentro do âmbito da Europa, é portanto aquela a que somos levados, talvez inesperadamente, por investigarmos a função social da poesia. Certamente não pretendo passar deste ponto para questões puramente políticas; mas gostaria de desejar que aqueles que estão preocupados com questões políticas cruzassem mais freqüentemente a fronteira em direção a essas coisas que tenho considerado. Pois elas dão o aspecto espiritual de problemas cujo aspecto material é o interesse da política. Do meu lado, preocupa-se com coisas vivas que têm suas próprias leis de crescimento, que nem sempre são razoáveis, mas devem precisamente ser aceitas pela razão: coisas que não podem ser metodicamente planejadas nem colocadas em ordem mais do que se podem disciplinar os ventos e as chuvas e as estações.

Se, finalmente, estou certo de acreditar que a poesia tem uma “função social” para com todas as pessoas da língua do poeta, estejam elas conscientes da existência dele ou não, segue que importa a cada povo da Europa que os demais povos continuem a ter poesia. Não consigo ler poesia norueguesa, mas se me fosse dito que não mais se tem escrito poesia em norueguês, devo sentir um alarme que seria muito mais que simpatia generosa. Considerá-lo-ia um sinal de doença provável de se espalhar por todo o Continente; o início de um declínio que indicaria que as pessoas em todos os lugares deixariam de ser capazes de exprimir, e conseqüentemente ser capazes de sentir, as emoções de seres civilizados. Isto, é claro, pode acontecer. Muito foi dito em todos os lugares sobre o declínio da fé religiosa; não tanta atenção foi dada ao declínio da sensibilidade religiosa. O problema da era moderna é não meramente a incapacidade para acreditar em certas coisas a respeito de Deus e do homem em que acreditavam nossos antecessores, mas a incapacidade para sentir através de Deus e do homem como eles o fizeram. Uma crença em que você não mais acredita é algo que até certo ponto você ainda pode entender; mas quando o sentimento religioso desaparece, as palavras pelas quais os homens lutaram para exprimi-lo perdem seu significado. É verdade que o sentimento religioso varia naturalmente de país para país, e de época para época, assim como o faz o sentimento poético; o sentimento varia, mesmo quando a crença, a doutrina, permanece a mesma. Mas esta é uma condição da vida humana, e é da morte que estou apreensivo. É igualmente possível que o sentimento pela poesia e os sentimentos que são o material da poesia possam desaparecer em todos os lugares: o que talvez ajude a facilitar aquela unificação do mundo que, para o bem deste, algumas pessoas consideram desejável.

Nenhum comentário:

Postar um comentário