sexta-feira, 27 de maio de 2016

Sorôco, sua mãe, sua filha (Guimarães Rosa)

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do
Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de
passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as
diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de
cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao
expresso dai de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para
longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.
As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não
queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez,
como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais
povo - o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de
bois, antes da guarita do guarda- chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as
duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só
tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.
A hora era de muito sol - o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de
cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar,
parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele
alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que
a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para
onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os
lugares são mais longe.
O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as
bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. - “Vai ver se botaram água fresca no carro...
“ - ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém
deu aviso: “Eles vêm!... “ Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um
homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo,
e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca,
grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.
Aí, paravam. A filha - a moça - tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não
vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras - o nenhum. A moça punha os olhos
no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de
admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos
espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas,
dependuradas - virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu
preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se
assemelhavam.
Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja,
num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente
não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos,
e por conta de Sorôco - para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de
paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: - “Deus vos
pague essa despesa... “
O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir
falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam
voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as
duas, pelejava. Dai, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar
ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências
de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por
força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.
De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha
do carro. - “Ela não faz nada, seo Agente... “ - a voz de Sorôco estava muito branda: - “Ela
não acode, quando a gente chama... “ A moça, ai, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar,
a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de
outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de
pressentimento muito antigo - um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois
puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da
outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas
entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida
nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por
bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado,
pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também
no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não
iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na
plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.
Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que
avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente,
sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.
Sorôco.
Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar
o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.
Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba
quadrada, surdo - o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargandose
de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras,
debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: - “O mundo está dessa forma...
“Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam
demais de Sorôco.
Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s'embora. Estava
voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.
Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num
excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo- Num rompido - ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si - e era a
cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.
A gente se esfriou, se afundou - um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem
ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também
a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele,
Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém
deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.
A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até
aonde que ia aquela cantiga.

Referências:

ROSA, João Guimarães. Sorôco, sua mãe, sua filha. [Conto] In: Primeiras Estórias. 14ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Disponível em: <http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/4908226.pdf?1430007872>

segunda-feira, 25 de abril de 2016

ENTÃO, ADEUS! – Lygia Fagundes Telles

Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na última rua do último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de bruma, de sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu ombro:

— Vejo que aprecia essas imagens antigas — sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios murchos num sorriso amável: – Tenho na sacristia algumas preciosidades. Quer vê-las?

Solícito e trêmulo foi-me mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por Aleijadinho, pois dele tinham a inconfundível marca nos traços dos rostos severos e nobres, de narizes já carcomidos… Mostrou-me todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo, acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.

— Volte sempre — pediu-me.

— Impossível — eu disse. — Não moro aqui, mas, em todo o caso, quem sabe um dia… — acrescentei se nenhuma esperança.

— E então, até logo! — ele murmurou descerrando os lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o destroço de um naufrágio.

Olhei-o. Sob a luz azulada do crepúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha fragilidade, que cheguei a me comover. Até logo?… “Então, adeus!”, ele deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma idéia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada que achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais parecia um antigo morto esquecido de partir?!…

Ouça, leitor: tenho poucas certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a mais absoluta das certezas: “Jamais o verei.” Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade seca da morte.

— Até logo! – eu disse cheia de enternecimento pelo seu ingênuo otimismo.

Afastei-me e de longe ainda o vi, imóvel no topo da escadaria. A brisa agitava-lhe os cabelos ralos e murchos como uma chama prestes a extinguir-se. “Então, adeus!”, pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. “Adeus.”

Nesta mesma noite houve o clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca.

Voltei-me. Diante de mim, o padre velhinho sorria.

— Boa noite!

Fiquei muda. Ali estava aquele de quem horas antes eu me despedira para sempre.

— Que coincidência… — balbuciei afinal. Foi a única banalidade que me ocorreu dizer.— Eu não esperava vê-lo… tão cedo.

Ele sorria, sorria sempre. E desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento quando nos despedimos na igreja e agora então, de um certo modo desafiante, estivesse a divertir-se com a minha surpresa. “Eu não disse até logo?”, os olhinhos enevoados pareciam perguntar com ironia.

Durante o jantar ruidoso e calorento, lembrei-me de Kipling. “Sim, grande e estranho é o mundo. Mas principalmente estranho…”

Meu vizinho da esquerda quis saber entre duas garfadas:

— Então a senhora vai mesmo nos deixar amanhã?

Olhei para a bolsa que tinha no regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta com a data do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa.

— Ah, não sei… Antes eu sabia, mas agora já não sei.

Lygia-Fagundes-Telles

Referências:

TELLES, Lygia Fagundes. Então, Adeus! In: "FIGURAS DO BRASIL 80 AUTORES EM 80 ANOS DE FOLHA", Editora PUBLIFOLHA. São Paulo:Folha de São Paulo, 1997. pág. 129 E 130. Disponível em: http://contobrasileiro.com.br/entao-adeus-lygia-fagundes-telles/